De quem é o seu corpo?
Refletir sobre esse questionamento nos pareceu urgente nos tempos atuais. Apesar de parecer simples, a resposta do Estado para essa pergunta perpassa questões complexas no âmbito jurídico, por exemplo. De Antonin Artaud (Corpo sem Órgãos) à Orlan (Arte Carnal), passando por Stelarc (Ear on Arm) e David Nebreda (auto-retratos), a arte já problematizou de diversas formas o assunto.
Até onde, de fato, possuímos autonomia sobre a materialidade e subjetividade dos nossos corpos?
E quando o assunto é a expressão da própria existência? Refletimos: “o que pode um corpo?”
PERFORMANCE
INSTALAÇÃO
A partir de Michel Foucault, compreendemos que poder, em política, principia pelo constrangimento de um sobre o outro. Para Norberto Bobbio, quando sentimos que não “podemos" algo, é sinal de que estamos sendo constrangidos pela possibilidade de ao menos uma das três formas de sanção existentes: moral (interna), social (coletiva) ou jurídica (estatal). Quando o assunto é gênero, muitas vezes, as três formas de sanção são aplicadas ao sujeito, simultâneamente. Saindo do âmbito jurídico, poderíamos passar agora pela psicologia, mas também pela antropologia, pelas ciências sociais, pela filosofia e até mesmo pela economia, dada a enorme complexidade do assunto. Judith Butler e Paul Preciado foram, de forma admirável, bem longe nesses campos.
Ao entrar em contato com a dramaturgia de “Genderless”, o performer agênero Guttervil sentiu no corpo a urgência que imanava das palavras da dramaturga Márcia Zanelatto. Personagem central da peça/performance, a ativista escocesa Norrie May-Welby foi contemplada por Zanelatto com um relato poético sobre sua trajetória que culminou no primeiro corpo a ser reconhecido oficialmente por um Estado como agênero. Para muitos por aí, isso pode significar pouco. Mas para Norrie, assim como para Guttervil é, antes de tudo, um atestado de inocência: frente ao Estado, frente a sociedade e, principalmente, para si mesmos.
Ao ser convocada para direção, Samira Lochter buscou nas referências estéticas algo que trouxesse a ideia de perseguição. Assim nasceu o espetáculo “Genderless, um corpo fora da Lei”. Thiago Capella realizou a programação dos dispositivos tecnológicos que permearam a encenação como um todo. Em meio a essa mistura surgiu a questão cerne da pesquisa que, agora, também foi aplicada à instalação: no mundo tecnológico operado pela frieza dos códigos binários é possível levantar a questão da não-binariedade de gênero? Em tempo, é possível lançar mão destes mesmos códigos para questionar essa lógica sistematicamente impositiva?